11.5.06

Acção Administrativa Especial

Arquivado em Os Aliados e a Justiça

Outros ÍNDICES - Home ALIADOS

Exmo. Senhor Juiz de Direito
do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto


M. Manuela Delgado Leão Ramos..., Paulo Ventura Araújo...,
Campo Aberto – Associação de Defesa do Ambiente..., G.A.I.A. – Grupo de Acção e Intervenção Ambiental... , e APRIL- Associação Política Regional e de Intervenção Local....

vêm, nos termos dos arts. 4.º, 5.º, 37.º, 46.º e 47.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), e no uso da legitimidade popular que lhes é reconhecida pelo art. 9.º/2 do CPTA, bem como pelo art. 2.º a Lei 83/95, de 31 de Agosto, instaurar

Acção Administrativa Especial

Contra: o Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), com sede no Palácio Nacional da Ajuda, 1319-021 Lisboa; o Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (MAOTDR); o Município do Porto, pessoa colectiva de direito público de base territorial, com sede na Praça General Humberto Delgado, Porto; e, na qualidade de particular contra-interessado, a Metro do Porto S.A., sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com sede na Avenida Fernão de Magalhães, 1862, 7.º, Porto;

I -Da legitimidade popular dos requerentes, e da sua ligação aos bens e valores de fruição colectiva que pretendem defender

1. Os dois requerentes singulares são de nacionalidade portuguesa, encontram-se devidamente recenseados nos cadernos eleitorais e no pleno gozo dos direitos civis e políticos inerentes à esfera jurídica de qualquer cidadão nacional, não sofrendo de qualquer constrangimento ao seu livre exercício – cfr. Docs. 1 e 2, que se juntam e se dão por inteiramente reproduzidos.

2. A Campo Aberto e o G.A.I.A – Grupo de Acção e Intervenção Ambiental são Organizações Não Governamentais de Ambiente (ONGA) (Nota 1- Deve, aliás, sublinhar-se que, nos termos dos arts. 4.º-k) e 17.º/3-b) da lei n.º 11/87, de 7 de Abril de 1987 (Lei de Bases do Ambiente), a noção legal de ambiente, enquanto bem juridicamente protegido, abrange, além do património natural, o património construído, em particular o património cultural. Sobre as relações de inclusão entre o direito do ambiente e o direito do património cultural, pode ver-se José Casalta Nabais, Noção e Âmbito do Direito do Património Cultural, in Revista do CEDOUA, Ano III, n.º 2, págs. 25 e ss.), sem fins lucrativos, cujo objecto estatutário fundamental consiste na defesa do ambiente, tanto na sua vertente de património natural, como de património construído _ cfr. os respectivos estatutos, que se juntam, como Docs. 3 e 4, os quais aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

3. Às ONGA, em consideração do importante papel que desempenham, reconhece o legislador uma alargada legitimidade processual, independente de qualquer interesse directo na demanda, nos do art. 10º-c) da Lei 35/98, de 18 de Julho.

4. A APRIL, Associação Política Regional e de Intervenção Local é uma associação sem fins lucrativos que, entre outros objectivos, visa a defesa e o aprofundamento da democracia, entendida na sua estreita articulação com o desenvolvimento e estimulando uma nova criatividade interligada em todas as áreas da vida social _ cfr. os respectivos estatutos, que se juntam, como Doc. 5, o qual aqui se dá por inteiramente reproduzido.

5. Todos os requerentes visam, ao fazerem uso do presente meio processual, proteger o ambiente, preservar o património cultural e a integridade de bens do domínio público do Município do Porto.

6. Trata-se, de facto, de bens jurídicos susceptíveis de serem ofendidos pelas decisões administrativas e pelos comportamentos contra os quais se rebela a presente iniciativa processual.

7. Numa síntese prenunciadora do que a narração subsequente permitirá revelar com mais detalhe, o que verdadeiramente está em causa é a afirmação e a protecção do valor histórico-patrimonial de uma das partes mais nobres do coração histórico da cidade do Porto, consistente no conjunto da Praça da Liberdade, Avenida dos Aliados e Praça General Humberto Delgado _ conjunto que, enquanto tal, dado o seu valor simbólico e cultural, se encontra em vias de classificação.

II- Dos Factos
A -O conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado e a servidão resultante do seu estatuto de património em vias de classificação

8. “A actual Praça da Liberdade designou-se primitivamente por Casal ou Lugar de Paio de Novais, Sítio ou Fonte da Arca, denominando-se, mais tarde, por Quinta, Campo ou Sítio das Hortas. Foi ainda Lugar ou Praça da Natividade, Praça Nova das Hortas, Praça da Constituição e de D. Pedro IV e, mais recentemente, Praça da República”.

9. “Já em 1691, a municipalidade do Porto e o Capítulo da Sé-Catedral tinham lançado o projecto de estabelecer no Campo das Hortas, propriedade do Capítulo, uma praça pública, entre a Porta de Carros e o Postigo de Santo Elói”.

10. “O projecto não foi por diante, tendo sido retomado em 1709, pelo então Bispo do Porto, D. Tomás de Almeida, que propõe a abertura de uma praça de formato quadrangular digna de "rivalizar com a Plaza Mayor de Madrid".
Tratava-se do primeiro grande empreendimento urbanístico de Portugal. Chegaram mesmo a efectuar-se os contactos de aforamentos das parcelas a construir e a lançar os alicerces de alguns dos edifícios, contudo, por dificuldades várias também este projecto não teve continuidade”.

11. “Em 1718 novo projecto foi lançado, cuja realização teve início quando "o cabido da Sé cedeu a 17 de Fevereiro de 1721 terrenos seus expressamente para uma praça". Novas ruas foram então abertas - a rua do Laranjal das Hortas (futura rua dos Lavadouros, hoje desaparecida) e a rua da Cruz (actual rua da Fábrica).
Da concretização deste projecto resultaria a Praça Nova das Hortas (ou só Praça Nova) limitada a Norte por dois palacetes (desaparecidos), onde funcionaram os Paços do Concelho até 1915; a Sul pela muralha fernandina, destruída mais tarde em 1788 e substituída por um conjunto monumental - o convento dos Frades de Santo Elói - cuja fachada sobre a praça constitui o edifício "da Cardosa", só terminado no século XIX, mas obedecendo ao primitivo projecto - a praça "tout-court". O lado oriental era ocupado pelo Convento dos Congregados, e o lado poente só mais tarde foi edificado”.


12. “Durante o século XIX, factores vários - a instalação da Câmara no topo Norte (1819); a inauguração da Ponte de D. Luís (1887); a extensão da via férrea até S. Bento (1896) - contribuem para tornar a Praça definitivamente num importante centro político, económico e sobretudo social”.

13.“Em meados daquele século, a Praça era já o "ponto predilecto de reunião dos homens graves da política e do jornalismo, da alta mercância tripeira e dos brasileiros". Predominavam os botequins: "Guichard", "Porto Clube", "Camacho", "Suíço", "Europa", "Antiga Cascata", "Internacional", etc., aos poucos desaparecidos em consequência da profunda reestruturação daquela área, onde as entidades bancárias, companhias seguradoras ou escritórios conquistaram o seu espaço”.

14. “As obras da Avenida iniciaram-se no dia 1 de Fevereiro de 1916 com a demolição do edifício que serviu de Paços do Concelho, a norte da Praça da Liberdade, acompanhada do desaparecimento das ruas do Laranjal, de D. Pedro, etc.
Ao cimo da Avenida erguem-se os modernos Paços do Concelho, edifício em granito e mármore levado a cabo pela primeira vereação republicana saída do 5 de Outubro de 1910. Foi um projecto do arquitecto Correia da Silva (1920).
No seu todo, resultou um conjunto urbano monumental, de particular interesse histórico e artístico”.

15. O que se deixa transcrito nos artigos 8 a 14 desta peça processual constitui, ipsis verbis, sem tirar nem pôr, a “nota histórico-artística” que justifica a abertura do procedimento de classificação do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, situado no coração do centro histórico do Porto, determinada por Despacho de 28 de Setembro de 1993 do presidente do IPPAR (Nota 2: Pode encontrar-se o texto transcrito, e a referência ao mencionado despacho, no sítio electrónico do próprio IPPAR, no endereço: http://www.ippar.pt/pls/dippar/pat_pesq_detalhe?code_pass=155834. ), proferido na sequência de proposta da Câmara Municipal do Porto.

16. Ao abrigo do disposto no art. 18.º/1 da Lei 13/85, de 6 de Julho, então em vigor (e entretanto revogada pela Lei 107/2001, de 8 de Setembro, que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural português _ LPC), por força da emissão daquele despacho do presidente do IPPAR o conjunto ( Nota 3: Nos termos do art. 8.º/1-b) da Lei 13/85, um conjunto é um "agrupamento arquitectónico urbano ou rural de suficiente coesão, de modo a poder ser delimitado geograficamente, e notável, simultaneamente, pela sua unidade ou integração na paisagem e pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, científico ou social". ) da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado adquiriu o estatuto de bem em vias de classificação, protegido preventivamente pela correspondente servidão administrativa.

17. Não tendo terminado ainda o correspondente procedimento administrativo de classificação, o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado permanece sob o estatuto de património em vias de classificação.

18. O conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, para além da significação histórico-arquitectónica que corporiza, suporta também uma importante simbologia sócio-política, na medida em que se trata de um espaço que testemunhou importantes acontecimentos da vida da cidade e do país.

19. Mas a este emblemático espaço público do Porto não são também alheios os valores artísticos, materializados nos belíssimos desenhos incrustados na calçada portuguesa que, antes das obras que a Metro do Porto, SA aí vem realizando (às quais adiante se faz referência), recobriam os passeios, em parte representativos das tarefas ligadas à produção do vinho do Porto.

20. Característicos deste lugar eram, igualmente, antes de destruídos por aquelas obras, os espaços ajardinados, com particular destaque para os canteiros floridos, geometricamente recortados.

21. Para permitir uma representação mais impressiva e plástica da breve descrição que acaba de fazer-se, juntam-se algumas fotografias de diferentes épocas históricas e perspectivas _ cfr. Docs. 6 a 14, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

22. Pois bem, é a componente pública deste espaço global, feito de três peças distintas (as duas praças e a avenida), a que a evolução urbana e arquitectónica acabou por conferir uma específica coesão, marcado pelo peculiar cromatismo resultante da luminosidade da calçada e do verde dos canteiros, que a Metro do Porto, SA, com a cumplicidade do IPPAR e do Município do Porto e o contributo da negligência do MAOTDR, vem desmantelando e adulterando.

B -Os elementos do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado que são objecto de protecção: de como o espaço público, designadamente a sua estrutura organizatória global, a configuração dos passeios e da placa central, os jardins e o especial cromatismo e conteúdo artístico da calçada portuguesa se acham abrangidos pelo procedimento de classificação

23. Para dissipar dúvidas, e prevenindo já argumentos que decerto serão mobilizados por alguns dos réus (ou pela contra-interessada particular), importa delimitar com particular cuidado os elementos que, integrando o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, se acham abrangidos pela servidão resultante da abertura do referido procedimento de classificação.

24. Ora o elemento central e primordial do conjunto _ aquele que é visado, em primeira linha, pelo procedimento de classificação _ é, justamente, o espaço público urbano constituído pela Avenida e pelas duas Praças, consideradas em si mesmas.

25. O que, portanto, é visado, em primeira linha, pelo propósito protector do procedimento de classificação é a especificidade urbanística desse espaço público, a sua estrutura organizatória, o modo como se articulam os seus componentes (a Avenida e as duas Praças), a orientação e o perfil dos passeios e da placa central, o coberto vegetal que nele foi crescendo, a geometria verde dos jardins e dos canteiros, e o especial cromatismo e luminosidade da calçada portuguesa.

26. Os edifícios sobranceiros a este espaço público, projectados e construídos em função dele e da sua fisionomia urbanística, apenas beneficiam do efeito protector da abertura do procedimento de classificação na medida em que dele são envolventes.

27. Quer dizer, os edifícios apenas reflexamente são protegidos. Por outras palavras: são protegidos não em razão das suas características arquitectónicas específicas, mas apenas porque envolvem aquele espaço público, e porque foram projectados e construídos para se ajustarem e respeitarem os seus traços urbanísticos.

28. Que é assim demonstra-o, desde logo, o texto do próprio Despacho de 28 de Setembro de 1993 do presidente do IPPAR.

29. Com efeito, além de não fazer referências específicas a qualquer edifício em particular, nem sequer a traços arquitectónicos comuns, aquele Despacho salienta, já na sua parte final, que se trata de proteger um conjunto urbano monumental _ acentuando a dimensão urbana (e não exactamente a dimensão arquitectónica) do bem, e, portanto, a predominância da organização e composição do espaço público.

30. Esta especial dignidade de protecção jurídico-patrimonial conferida ao espaço público está, aliás, em linha com os critérios adoptados pela UNESCO na classificação do Centro Histórico do Porto como património mundial. Na verdade, a certo passo do relatório do Órgão Consultivo do Comité para o Património Mundial da UNESCO (criado pela Convenção de Paris de 1972, relativa à protecção do património mundial), pode ler-se : “ O Porto tem também alguns espaços abertos monumentais, incluindo a Praça da Batalha, onde ocorreram importantes eventos da história da cidade, e a Praça da Liberdade, do séc. 18, com os seus excelentes jardins” . ( Nota: Tradução feita pelos autores de um excerto da versão inglesa do relatório do Comité para o Património Mundial da UNESCO, cujo texto integral se pode consultar in: http://whc.unesco.org/archive/advisory_body_evaluation/755.pdf )

31. Demonstra-o também, em segundo lugar, e com especial intensidade, a proposta de classificação da Câmara Municipal do Porto que esteve na origem do .Despacho de 28 de Setembro de 1993 do presidente do IPPAR _ cfr. Doc. 15, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido.

32. O título do referido documento da Câmara Municipal do Porto começa por ser absolutamente esclarecedor quando se refere ao “espaço” do conjunto e aos “edifícios envolventes”.

33. Por outro lado, todo o texto da memória descritiva e justificativa que suporta a proposta de classificação, sempre num registo mais urbanístico do que arquitectónico, confere relevo e primazia à história da configuração e organização do espaço público qua tale.

34. Daí que, ainda no mesmo documento, se faça uma especial referência ao arquitecto inglês Barry Parker, ao qual a Câmara Municipal do Porto encomendou, precisamente, o projecto urbanístico da “Avenida”.

35. Barry Parker que, curiosamente, se destaca na história da arquitectura europeia precisamente pela sua capacidade de incorporar no espaço urbano zonas verdes e jardins _ jardins como aqueles que projectou para a Avenida dos Aliados e que, agora, como adiante se relata, acabam de ser destruídos pelas obras da Metro do Porto, SA.

36. E demonstra-o, finalmente, a relação entre o texto da proposta de classificação e o teor do Despacho de 28 de Setembro de 1993 do presidente do IPPAR, que a aceitou.

37. Dizia-se, na parte final do texto da proposta, que, além do “espaço” propriamente dito, a classificação deveria ser “extensiva” a algumas esculturas nele existentes (estátua de Almeida Garret, “Os Meninos” e a “Menina Nua”).

38. O teor daquele Despacho do presidente do IPPAR não inclui nenhuma menção a qualquer dessas esculturas. Não significa isso, evidentemente, que o procedimento de classificação não abranja tais obras artísticas.

39. Significa apenas que, incidindo o procedimento de classificação, em primeira linha, sobre o espaço público urbano (e não sobre os edifícios envolventes), seria desnecessário e redundante identificar cada um dos elementos que nele se integram.

40. Se o que se quer proteger, como verdadeiramente sucede, é todo o espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, a sua organização e todos os seus componentes, basta, no acto de abertura do procedimento de classificação, referir esse mesmo espaço, tornando-se desnecessário individualizar cada um dos elementos que nele se inserem.

41. A referência unitária ao espaço engloba e incorpora a referência a todos os elementos que o definem e compõem.

C -O plano de destruição do espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, a sua fonte inspiradora e as suas fases de execução

a) O plano da Metro do Porto, SA

42. A Metro do Porto, SA é a concessionária da construção, equipamento e exploração do sistema de metro ligeiro da área metropolitana do Porto (Nota 5: Os Estatutos da Metro do Porto, SA e as Bases do Contrato de Concessão estabelecido com o Estado Português foram aprovados pelo D.L. n.º 394-A/98, de 15 de Dezembro, entretanto modificado pela Lei n.º 161/99, de 14 de Setembro, pelo D.L. n.º 261/2001, 26 de Setembro, pelo D. L. n.º 249/2002, de 19 de Novembro, pelo D.L n.º 166/2003, de 24 de Julho, e, enfim, pelo D.L. 233/2003, de 27 de Setembro.) .

43. A Metro do Porto, SA tomou a seu cargo a projecção, realização e financiamento de uma obra que vem sendo denominada “requalificação da Avenida dos Aliados”.

44. A consumação desta obra, que já está em curso há meses, tem por efeito a profunda e radical transformação do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

45. Na verdade, dela resulta, em rigor, a destruição do espaço público daquele bem dominial em vias de classificação, a eliminação das especificidades urbanísticas e histórico-arquitectónicas, ambientais e artísticas que marcam e suportam a sua identidade _ especificidades que, como se viu, supra, nos artigos 9 a 21 desta peça, estiveram na base da decisão, tomada pelo IPPAR, de abrir o respectivo procedimento de classificação, ao que é inerente o estatuto de protecção reconhecido aos bens imóveis em vias de classificação.

46. Efectivamente, entre outros atentados à integridade do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, a obra que a Metro do Porto, SA vem executando compreende as seguintes intervenções:

- alargamento dos passeios laterais;
- estreitamento das placas centrais;
- colocação de duas bocas de acesso à estação de metro construída no subsolo da Avenida dos Aliados, uma em cada passeio lateral (norte-poente e norte-nascente);
- eliminação definitiva de todos os canteiros e demais coberto vegetal;
- arrancamento de parte das árvores existentes, e severa mutilação de todas as que ladeiam a Avenida;
- remoção completa e definitiva do pavimento de calçada portuguesa em calcário e basalto, substituindo-o por cubos de granito;
- substituição do pavimento em asfalto das faixas de rodagem por paralelepípedos de granito;
- implantação de uma fonte na parte superior da Avenida dos Aliados.

47. Uma vez concluídas todas estas intervenções, o espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado verá radicalmente subvertida a fisionomia urbana e arquitectónica existente no momento da abertura do procedimento de classificação:

48. em vez de um conjunto urbano feito de três elementos distintos (as duas praças e a avenida) passar-se-á a ter um corpo monolítico, aprumado ao jeito ortogonal de uma alameda;

49. em vez da diversidade cromática dos canteiros de flores, ter-se-á a monotonia cinzenta dos cubos de granito;

50. em vez da luminosidade aconchegante que irradia da calçada portuguesa, imperará a aridez inóspita do granito.

b) -A fonte inspiradora do plano da Metro, SA: um grande Arquitecto que não gosta do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado tal como ele é

51. O plano das obras ditas de requalificação da Avenida dos Aliados assenta num estudo preliminar da autoria do Arquitecto Álvaro Siza, contratado pela Metro do Porto, SA, intitulado “organização do espaço da Praça da Liberdade, Avenida dos Aliados e Praça Humberto Delgado”.
52. Este estudo, constituído por uma curta memória justificativa ( não mais do que uma página pdf), por uma planta de apresentação e algumas fotografias de várias praças de diferentes países, foi entregue na Delegação Regional do Norte do IPPAR em 29 de Abril de 2005 pelo gabinete de arquitectura Souto Moura, Arquitectos Lda_ cfr. Doc. 16, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido.

53. Basta ler a brevíssima memória justificativa (em pdf) que integra este estudo preliminar para se perceber que o arquitecto seu autor faz uma apreciação negativa da actual configuração (isto é, da configuração anterior ao início das obras) do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

54. Segundo ele, o espaço em causa estaria algo desordenado, denotando alguma “ambiguidade formal”, em resultado de a sua estruturação não ter obedecido ao projecto original do arquitecto Barry Parker, dos princípios do século 20.

55. Neste contexto, a opção de Álvaro Siza torna-se compreensível: consiste em introduzir todas as alterações necessárias para “recuperar a ordem perdida”, transformando o espaço segundo uma lógica de alameda.

56. Em suma: na base do plano de obras da Metro do Porto SA está, portanto, a ideia de que o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado é uma espécie de equívoco da história, que deve ser corrigido à luz de um novo princípio ordenador.

57. Trata-se de uma ideia respeitável. Há, todavia, um “pequeno” obstáculo à sua implementação prática: é que, como já se demonstrou, o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado encontra-se em vias de classificação, tal como é, tal como está (rectius: tal como era e tal como estava antes da intervenção desfiguradora da Metro do Porto SA), ainda que (segundo o juízo estético de alguns) “desordenado” ou formalmente “ambíguo”.

58. E se porventura o espaço, na configuração anterior às obras da Metro do Porto SA, fosse “desordenado” e “formalmente ambíguo”, é assim mesmo, desordenado e ambíguo, que está protegido pela servidão inerente ao seu estatuto de bem cultural em vias de classificação.

59. Não se termina este ponto sem salientar que, como a correspondente memória justificativa evidencia, o estudo preliminar da autoria do Arquitecto Álvaro Siza não é sequer algo inteiramente novo, que tenha sido elaborado propositadamente para as obras de construção do canal de metro e suas estações: trata-se, antes, de uma ideia que, já em 2000, havia sido apresentada no âmbito das actividades da sociedade Porto 2001, SA, então abandonada, ao que se sabe, por constrangimentos financeiros.

c) As fases de execução do plano da Metro do Porto, SA

60. A Metro do Porto, SA planeou repartir a execução das obras projectadas para o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado por duas fases: na primeira fase, já concluída, foram abertas as bocas de acesso à estação de metro (instalada no subsolo da Avenida dos Aliados) e transformados os passeios norte-poente e norte-nascente da Avenida dos Aliados; na segunda fase, actualmente em curso de realização, vêm sendo levadas a cabo as obras previstas para as placas centrais da Avenida e para as Praças da Liberdade e General Humberto Delgado.

III -Situação jurídico-urbanística e jurídico-ambiental (e correspondentes ilegalidades) das obras realizadas pela Metro do Porto SA

A -Realização de obras, que não se integram no objecto da Concessão, sem licença municipal

61. Em Maio de 2005, já a Metro do Porto, SA havia iniciado as obras de intervenção no espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

62. No momento presente, terminadas já as obras da primeira fase, relativas à abertura das bocas de acesso à estação subterrânea (já funcionais desde Agosto último) e à transformação dos passeios laterais norte-poente e norte-nascente, estão em curso as obras da segunda fase.

63. Todas estas obras estão sujeitas a prévio licenciamento municipal, como é imposto no art.4.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo D.L. n.º 555/99, de 16 de Dezembro.

64. A Metro do Porto, SA, todavia, indiferente a este constrangimento jurídico-urbanístico, com a complacência do Município do Porto, nunca requereu a licença de cuja emissão depende a legalidade das obras.

65. É certo que o art.7.º/1-e) do RJUE isenta de licenciamento as obras de edificação ou demolição promovidas por entidades concessionárias de obras ou serviços públicos.

66. Todavia, essa isenção não é genérica nem indiscriminada, apenas se referindo às obras que “se reconduzam à prossecução do objecto da concessão”.

67. Nos termos da Base I da Concessão do sistema de metro ligeiro do Porto, o seu objecto consiste na realização das obras de construção do canal e das estações e na exploração comercial do correspondente serviço de transporte.

68. Com o objecto da concessão, assim definido, coincide o próprio objecto social da Metro do Porto, SA, identificado nos arts. 3.º e 4.º dos respectivos Estatutos.

69. Embora as normas que se acaba de convocar, concernentes à delimitação do objecto da concessão e do objecto social estatutário da Metro do Porto, SA, lhe não façam qualquer referência específica, não custa admitir que ainda se possa reconduzir à “prossecução do objecto da concessão” as obras estritamente necessárias para repor a situação urbana alterada pela implantação do canal de metro à superfície ou pela abertura de bocas de acesso às estações subterrâneas e correspondentes entradas de ar.

70. Quer dizer, é compreensível que faça parte do objecto da concessão, e do objecto social da própria concessionária, a efectivação dos trabalhos necessários para reparar os estragos causados à superfície pela realização das obras de construção do canal do metro e das bocas de acesso às estações subterrâneas.

71. Mas, seguramente, já não fazem parte do objecto da Concessão obras que, como aquelas que a Metro do Porto SA vem realizando no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, indo muito além do que a necessidade de reposição determina, se traduzem na transformação completa daquele espaço municipal.

72. Tanto mais quanto é certo que, no caso, se trata de um troço de metro subterrâneo, em que as obras à superfície se limitam à abertura das bocas de acesso à estação e das entradas de ar.

73. Parece, pois, que as obras de completa reconformação urbanística do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado que fazem parte do plano de intervenção da Metro do Porto SA não são feitas por causa dos trabalhos de construção do metro.

74. São feitas, isso sim, por ocasião e a pretexto deles.

75. Aliás, como já se demonstrou, o estudo preliminar que consagra a nova concepção a que se quer submeter aquele espaço municipal é muito anterior ao início das obras que a Metro do Porto, SA vem desenvolvendo, datando de Julho de 2000.

76. Por outro lado, a localização das bocas de acesso à estação subterrânea da Avenida dos Aliados (uma em cada passeio lateral) foi já determinada pela própria concepção de organização do espaço subjacente àquele estudo preliminar.

77. Em suma, as obras que a Metro do Porto, SA vem desenvolvendo no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, cabendo decerto no leque de atribuições do Município do Porto, são seguramente estranhas ao circunscrito objecto da concessão da construção do sistema de metro ligeiro do Porto, e alheias ao objecto estatutário da concessionária _ pelo que não estão, de nenhum modo, dispensadas de licenciamento municipal.

B -Violação do parecer final de Avaliação de Impacte Ambiental

78. No quadro normativo então em vigor, consubstanciado no D.L. 186/90 ( Nota 6: Entretanto revogado pelo D.L. 69/200, de 03 de Maio, depois alterado pelo D.L. 197/2005, de 08 de Novembro.), de 6 de Junho, na redacção resultante do D.L. 278/97, de 08 de Outubro, o projecto geral de construção do sistema de metro ligeiro do Porto estava sujeito à prévia realização de uma Avaliação de Impacte Ambiental (AIA).

79. Nos termos do art. 2.º/2 daquele diploma legal, o procedimento de AIA visa prever, neutralizar e minimizar os efeitos negativos da execução dos projectos a ele sujeitos, no que concerne aos componentes ambientais tanto estritamente naturais (fauna, flora, solo, clima) como humanos, designadamente os bens materiais e o património cultural (o que, de novo, confirma as relações de inclusão que unem o direito do ambiente ao direito do património cultural).

80. O procedimento de AIA, como se achava configurado na legislação coeva aplicável, compreendia três elementos fundamentais: o Estudo de Impacte Ambiental (EIA), a elaborar e a apresentar pelo dono da obra; a consulta pública; e o parecer final sobre o projecto, da competência da tutela governamental do ambiente.

81. No caso em apreço, a Comissão de Avaliação nomeada pela então Direcção Geral do Ambiente emitiu parecer favorável à construção do sistema de metro ligeiro do Porto _ cfr. Doc. 17, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido.

82. Tratou-se, contudo, de um parecer favorável condicionado.

83. E condicionado, no que ao caso interessa, ao cumprimento dos programas e medidas de minimização dos impactes negativos do projecto no ambiente e no património cultural previstos e preconizados no próprio EIA _ é justamente este condicionamento (consistente, como se vê, na adopção homologatória das propostas do EIA) que, expressamente, se estabelece na pág. 61 do parecer final da referida Comissão de Avaliação _ cfr. Doc. 17.

84. Quanto aos programas e medidas preconizadas, em geral, pelo EIA, destacam-se os seguintes:

- constituição de “um Programa de Salvaguarda do Património Cultural Construído e um Programa de Acompanhamento Ambiental da obra, que faça a inventariação, prospecção, sondagem e recuperação dos elementos de interesse patrimonial”;
- “medidas necessárias para que o coberto vegetal não seja destruído desnecessariamente”;
- “recuperação de todas as áreas que venham a ser afectadas por qualquer processo”;
- “recuperar imediatamente após a finalização das obras todos os jardins públicos e arruamentos afectados pelas obras”;
- “recuperar-se imediatamente após a finalização das obras os jardins públicos e arruamentos, destacando-se pela sua localização no centro do Porto e pela natureza das obras aí previstas, a avenida e jardim dos Aliados”;

85. No que diz respeito, especificamente, ao conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, o EIA, para que remete o parecer final da Comissão de Avaliação, é particularmente exigente nos cuidados que preconiza. Nele se pode ler o seguinte:

“Elementos de interesse arquitectónico identificados na área do estudo (…):
esta secção corresponde ao jardim dos Aliados, prevendo-se uma grande afectação do mesmo, consequência da obra da linha do metro e da instalação da estação dos Aliados; este impacte será contudo temporário, podendo ser facilmente adoptadas medidas mitigadoras durante a obra, bem como a reposição do jardim imediatamente após a sua conclusão”.

86. Para o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, o EIA (para o qual, insiste-se, remete homologatoriamente o parecer final da Comissão de Avaliação), prevê mesmo medidas especiais de “integração estética e paisagística”, a saber:

"1. Levantamento topográfico da vegetação.
2. Selecção criteriosa das espécies vegetais existentes no jardim dos Aliados que possam ser transplantadas e o seu devido acondicionamento para posterior recolocação.
3. Recuperação do jardim após a conclusão do empreendimento repondo-se, tanto quanto possível, a situação inicial."
(Nota 7: As passagens do EIA constantes do texto desta peça foram transcritas a partir do volumoso processo consultado na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, do qual não foi possível ainda obter cópia. Por isso que, na parte final desta peça, se requer a intimação da Metro do Porto, SA para trazer aos autos todos os volumes do EIA, cuja elaboração foi responsabilidade sua.)

87. Quanto às obras previstas, e já em curso, para o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, como resulta claramente de toda a narração que antecede, a Metro do Porto, SA, exorbitando largamente do objecto da Concessão de que está incumbida, bem como dos limites do seu objecto estatutário, vem desrespeitando frontal e clamorosamente as condições de que a Comissão de Avaliação fez depender a emissão de parecer favorável ao projecto de construção _ para não dizer, mais radicalmente, que as tem ignorado, actuando como se elas não existissem, ou como se a elas não estivesse vinculada.

88. Com efeito, a Metro do Porto, SA vem fazendo exactamente o contrário daquilo que é determinado no Parecer Final do procedimento de AIA.

89. Ou seja, em nome da obediência reverente e escolástica à orientação estética do autor do já mencionado “estudo preliminar”, a que subjaz a ideia de que o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado não devia ser como é (como era antes das obras que o vem tornando irreconhecível) _ ainda que seja por ser como é que se acha em vias de classificação como património cultural valioso! _, a Metro do Porto, SA, em lugar de preservar, destrói.

90. Em lugar de limitar a sua intervenção ao mínimo absolutamente necessário _ como é preceituado no Parecer Final de AIA _, a Metro do Porto, SA fez-se executora de um plano de aniquilação de tudo aquilo que constituía a riqueza identificadora daquele histórico espaço público municipal.

91. Em lugar de repor o coberto vegetal que fosse inevitável desfazer por causa das obras à superfície, a Metro do Porto, SA, vem sepultando sob um lívido pavimento de cubos de granito mesmo aquilo em que as obras à superfície nem sequer tiveram necessidade de tocar.

92. Embora não os explique na totalidade, a estes desmandos não é totalmente alheio, de resto, o facto de as bocas de acesso à estação subterrânea terem sido colocadas nos passeios laterais.

93. Sucede, todavia, que este mesmo facto constitui um flagrante desvio ao projecto de construção do sistema de metro que foi objecto do parecer final (favorável condicionado) de Avaliação de Impacte Ambiental.

94. Na verdade, o projecto de construção do metro que foi aprovado por aquele parecer final de Avaliação de Impacte Ambiental (que também visa assegurar a protecção do património cultural) previa que as bocas de acesso à estação subterrânea dos Aliados fossem colocadas na placa central da Avenida dos Aliados _ e previa-o porque, justamente, era essa a solução menos agressiva para a integridade do espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

95. Além, portanto, de não respeitarem as condições impostas pelo Parecer Final de Avaliação de Impacte Ambiental, as obras que a Metro do Porto, SA vem executando não são sequer conformes ao projecto que o mesmo aprovou, com condições.

96. A realização das obras em violação das condições impostas no Parecer Final do procedimento de AIA _e em violação, também, do próprio projecto por ele aprovado _ constitui ilegalidade grave, que integra mesmo o tipo contra-ordenacional previsto no art. 10.º do já citado D.L. 186/90, de 06 de Junho, então em vigor . (Nota 8: Tipo contra-ordenacional que se mantém no regime de AIA actualmente vigor (cfr. art. 37.º do D.L. 69/2000, de 03 de Maio).

97. Além disso, nos termos do art. 10.º/5 do mesmo diploma legal, compete à entidade com competências de regulação e fiscalização na área do ambiente tomar as medidas previstas no art. 48.º da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 07 de Abril): intimar os infractores a cessarem a ilegalidade e a reporem a situação preexistente.

98. No caso, a Inspecção Geral do Ambiente (que é o organismo central de inspecção do MAOTDR, de acordo com o quadro orgânico estabelecido no D.L. 549/99, 14 de Setembro), apesar das instâncias da ONGA Campo Aberto, aqui requerente, não adoptou ainda qualquer decisão ou providência _ cfr. Doc. 18, que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.

99. Razão pela qual, na conclusão desta peça, se pedirá que o MAOTDR seja condenado a ordenar à Metro do Porto, SA a tomada de todas as medidas necessárias à reposição do respeito pelo Parecer de Avaliação de Impacte Ambiental.

100. E não venha dizer-se, no intuito de deslocar o problema da sua verdadeira sede, que a obra que a Metro do Porto, SA vem levando a cabo no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado não está sujeita à exigência de prévio procedimento de avaliação de Impacte Ambiental.

101. O que importa é que se trata de uma obra que se integra na execução de um projecto global (o projecto de construção do Metro do Porto) que foi efectivamente objecto de Parecer emitido na sequência de procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental, o qual não pode deixar de ser respeitado.

102. Não se trata, portanto, de defender que a obra que a Metro do Porto, SA vem levando a cabo devesse ter sido precedida de um autónomo e novo procedimento de avaliação de Impacte Ambiental.

103. Do que se trata, mais modesta e simplesmente, é de exigir que seja respeitado o Parecer de Avaliação de Impacte Ambiental que já existe, e ao qual as obras em curso devem obedecer, em particular no que concerne às condições especificamente impostas para o espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

C -Não cumprimento do dever de prévia audição dos cidadãos, imposto na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (Lei da Acção Popular _ LAP)

104. Preceitua o art. 4.º/1 da LAP que “a decisão sobre a localização e a realização de obras públicas ou de outros investimentos públicos com impacte relevante no ambiente ou nas condições económicas e sociais e da vida em geral das populações ou agregados populacionais de certa área do território nacional devem ser precedidos, na fase de instrução dos respectivos procedimentos, da audição dos cidadãos interessados e das entidades defensoras dos interesses que possam vir a ser afectados por aqueles planos ou decisões”.

105. No n.º3 da mesma disposição, “são consideradas como obras públicas ou investimentos públicos com impacte relevante para efeitos deste artigo os que se traduzam em custos superiores a um milhão de contos ou que, sendo de valor inferior, influenciem significativamente as condições de vida das populações de determinada área, quer sejam executados directamente por pessoas colectivas públicas quer por concessionários”.

106. O custo global (incluindo despesas com projectistas) das obras planeadas pela Metro do Porto, SA para o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado ultrapassa a cifra de € 5 000 000,00.

107. De todo o modo, trata-se, seguramente, de uma intervenção urbana que influencia significativamente as condições de vida da população do Porto, como, de resto, é testemunhado pela alargada discussão pública informal que tem gerado . (Nota 9: Um excelente repositório dos contributos e manifestações dessa discussão pode ver-se em http://avenida-dos-aliados-porto.blogspot.com/.)

108. Importa não esquecer que aquilo de que se trata é, assumidamente, de uma intervenção que transforma radicalmente, na sua estrutura, fisionomia e conteúdo, um dos espaços públicos mais emblemáticos da cidade do Porto.

109. Não obstante, a Metro do Porto SA, infringindo o dever a que legalmente estava adstrita _ pois que o seu plano de intervenção naquele espaço municipal se subsume efectivamente na previsão do art. 4.º/1 da LAP _, não pôs em marcha o procedimento de audiência prévia previsto e regulado nos arts. 5.º a 10.º da LAP.

IV -Identificação dos actos administrativos entretanto praticados pelo IPPAR, cuja nulidade se pretende seja declarada

110. Em Maio de 2005, já a Metro do Porto, SA, sem qualquer licenciamento municipal ou autorização do IPPAR, havia iniciado as obras relativas à primeira fase de intervenção (rectius: de demolição) no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

111. Facto que, além da violação do disposto no art. 4.º do RJUE, se consubstanciava numa grosseira violação do art. 45.º/3 da LPC, que sujeita quaisquer obras ou intervenções em bens imóveis em vias de classificação (como é o caso do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado) a prévia autorização do IPPAR.

112. O IPPAR, todavia, em lugar de determinar o imediato embargo das obras ilegalmente em curso de realização e de, simultaneamente, promover a instauração do correspondente processo contra-ordenacional _ como é preceituado nos arts. 47.º e 105.º e seguintes da LPC _, manteve-se inerte, preferindo, em amena cumplicidade com o prevaricador, a realização de quotidianos conciliábulos com os gabinetes de arquitectura contratados pela Metro do Porto, SA.

113. Entretanto, através de despacho de 06 de Junho de 2005(cfr. Doc. 19, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido), o presidente do IPPAR autorizou ( Nota 10: Tanto o instrumento de notificação daquele despacho (cfr. Doc.32), como as informações para que remete aludem a "parecer favorável". Afigura-se, todavia, que se trata de mera incorrecção terminológica, uma vez que as normas jurídicas que o despacho convoca, designadamente o art. 45.º da LPC, prevêem a figura da “autorização” e não a do "parecer favorável". Sob pena, portanto, de se entender que o IPPAR praticou um acto cuja competência se não acha prevista na lei, deve considerar-se a expressão "parecer favorável" como significando "autorização”" (que é, na verdade, o único acto para o qual o IPPAR tem competência) a realização das obras da primeira fase de execução do plano de intervenção no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

114. Melhor dizendo, o presidente do IPPAR, por meio desse despacho, ratificou as obras até então já consumadas e autorizou as que daí em diante, referentes à primeira fase, se realizassem.

115. Os ora autores pediram a este mesmo tribunal, em requerimento inicial que deu entrada na correspondente Secretaria em 12 de Dezembro de 2005 _ que deu origem ao Processo n.º 2481/05.7BEPRT _, a suspensão de eficácia daquele despacho de autorização do presidente do IPPAR (de 06 de Junho de 2005) . (Nota 11: Processo que veio a terminar com uma decisão que, em face de desenvolvimentos posteriores, julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.)

116. Entrementes, em meados de Novembro de 2005, a Metro do Porto, SA já iniciara as obras da segunda fase de execução do seu plano de desmantelamento do espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

117. De facto, desde essa altura, nas Praças da Liberdade e General Humberto Delgado, bem como nas placas centrais da Avenida dos Aliados, segregadas por vedações metálicas, começaram a operar retro-escavadoras que, impunemente, avançavam na demolição da calçada e na remoção do coberto vegetal.

118. Pela segunda vez, portanto, a Metro do Porto, SA, afoita, avançava sem qualquer autorização prévia do IPPAR, repetindo o desdém que parece merecer-lhe o cumprimento da lei.

119. E o IPPAR, por seu turno, mais uma vez em branda conivência com o infractor, prescindiu de exercer os poderes (que são poderes-deveres) de acção, de fiscalização e de punição que lhe são atribuídos, em nome da defesa do Património Cultural, pelos arts 47.º e 105.º e seguintes da LPC.

120. O presidente do IPPAR, através de Despacho de 11 de Dezembro de 2005 (um domingo) _ no dia anterior à entrada do processo cautelar a que se reporta, supra, o artigo 115 desta peça _, autorizou (outra vez a posteriori) a realização das obras da segunda fase do plano de intervenção da Metro do Porto, SA no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado.

121. Desse Despacho foi a Metro do Porto, SA notificada através do ofício n.º S-2005/133734, de 13 de Dezembro de 2005 (um dia depois de o processo cautelar que vem de referir-se ter sido recebido na secretaria deste tribunal), proveniente do Director Regional do Porto do IPPAR _ cfr. Doc. 20, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido .

122. São, pois, os dois referidos Despachos de autorização do presidente do IPPAR (o de 06 de Junho de 2005, referente à primeira fase das obras, e o de 11 de Dezembro de 2005, referente à segunda das obras) que constituem o objecto do pedido de declaração de nulidade que integra a conclusão do presente articulado.

V -Da nulidade dos despachos do presidente do IPPAR de 06 de Junho de 2005 e de 11 de Dezembro de 2005

123. O referidos Despachos do presidente do IPPAR são actos nulos, devido, desde logo, à flagrante violação do art. 49.º da LPC _ violação que consubstancia ilegalidade expressamente cominada, no n.º 5 do mesmo preceito, com a sanção de nulidade. Mas nulo também, em face do art. 133.º2-c) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), porque se traduz numa autorização, ilegal, para a prática de um crime de dano qualificado, tipificado no art. 213.º/1-d) do Código Penal (CP). É o que, adiante, se procurará demonstrar.

A -Violação da norma do art. 49.º da LPC, cominada, no mesmo preceito, com a sanção de nulidade

124. A fundamentação das autorizações do IPPAR ora impugnadas corporiza-se nas informações dos serviços da Direcção Regional do Porto, para as quais remetem _ cfr. Docs. 19 e 20.

125. É, por outro lado, evidente que as autorizações ora impugnadas assentam no beneplácito acrítico docilmente conferido pelo IPPAR ao plano global de intervenção da Metro do Porto, SA e, em última instância, ao denominado estudo preliminar (datado de 2000) do Arquitecto Álvaro Siza.

126. Aliás, uma leitura atenta das informações que os actos autorizativos assimilam e homologam deixa perceber que o IPPAR, mais do que aferir o projecto de execução das obras em função das disposições legais aplicáveis, avaliou-o apenas à luz das orientações genéricas do referido estudo preliminar.

127. Ora, de tudo o que se foi deixando alegado (sobretudo, supra, nos artigos 42 a 59 desta peça), emerge uma constatação incontornável: o plano de intervenção da Metro do Porto, SA no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, inspirado no estudo preliminar do Arquitecto Álvaro Siza, consubstancia-se, na realidade, na sua destruição, na integral demolição de todos os elementos do seu espaço público.

128. Relembremo-lo:
- em vez de uma avenida e duas praças, passaremos a ter uma alameda ;
- os passeios passarão a ser mais largos e a placa central da pretendida alameda mais estreita do que a actual placa central da Avenida dos Aliados;
- em vez de se orientarem de modo convergente no sentido do edifício da Câmara Municipal, as vias de circulação que sobem e descem ao longo da Avenida dos Aliados, ficarão alinhadas paralelamente (o que, só por si, altera radicalmente a perspectiva de ordenação de todo o espaço);
- em vez de um pavimento de calçada portuguesa em calcário e basalto, passaremos a ter cubos de granito (provenientes, ao que se diz, da China);
- em vez de jardins, de canteiros, de verde, passaremos a ter cubos de granito, mais cubos de granito, só cubos de granito, no império do cinzento;
- em vez de espaço livre, passaremos a ter uma fonte dita de inspiração francesa, para, definitivamente, enterrar a História e internacionalizar (descaracterizar) os Aliados.

129. As autorizações concedidas pelo IPPAR são, portanto, um incondicionado salvo-conduto que afiança e avaliza a destruição desse histórico espaço municipal, bem como a sua submissão a uma concepção urbanística e estética que, sendo respeitável, lhe modifica radical e profundamente os seus traços fisionómicos mais característicos e identificadores.

130. Pois bem, o art. 49.º/2 da LPC faz depender a validade da autorização de demolição, ainda que parcial, de bens imóveis em vias de classificação de pressupostos apertadíssimos e particularmente severos:

"A autorização de demolição por parte do órgão competente da administração central, regional autónoma ou municipal tem como pressuposto obrigatório a existência de ruína ou a verificação em concreto da primazia de um bem jurídico superior ao que está presente na tutela dos bens culturais, desde que, em qualquer dos casos, se não mostre viável nem razoável, por qualquer outra forma, a salvaguarda ou o deslocamento do bem".

131. O n.º 3 do mesmo preceito, por seu turno, limita o alcance da autorização de demolição, quando possível, segundo um rigorosíssimo princípio da necessidade:
"Verificado um ou ambos os pressupostos, devem ser decretadas as medidas adequadas à manutenção de todos os elementos que se possam salvaguardar, autorizando-se apenas as demolições estritamente necessárias".

132. Ainda na mesma senda, que é a da ideia da (compreensível) preservação a todo o custo do património em vias de classificação, o n.º4 do art. 49.º da LPC, de maneira a desencorajar quaisquer estratégias de criação de factos consumados, prescreve:
"A autorização de demolição (…) não deve ser concedida quando a situação de ruína seja causada pelo incumprimento do disposto no presente capítulo, impondo-se aos responsáveis a reposição, nos termos da lei”.

Excurso: do conceito legal de demolição, e de como as obras autorizadas pelo IPPAR são de verdadeira demolição, ainda que se lhes dê o nome de “requalificação”

133.A este propósito, e de modo a cortar cerce previsíveis jogos semânticos em torno do sentido do conceito de demolição, importa, neste ponto do articulado, abrir um pequeno excurso, destinado a demonstrar que as obras autorizadas pelo actos impugnados do IPPAR redundam, indubitavelmente, num acto iconoclasta de demolição.

134. A extensão do conceito legal de demolição não se cinge à actividade de deitar abaixo "edifícios".

135. Nos termos do art. 2.º-g) do RJUE (Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo D.L. 559/99, 16 de Dezembro), as obras de demolição são definidas como "obras de destruição, total ou parcial, de uma edificação existente".

136. Sendo certo que o conceito legal de "edificação", distinto do de "edifício", é definido, no art. 2.º-a) do mesmo RJUE, como "qualquer construção que se incorpore no solo com carácter de permanência".

137. Quer dizer, edificações são quaisquer “conjuntos erigidos pelo homem, com quaisquer materiais, reunidos e ligados artificialmente ao solo ou a um imóvel, com carácter de permanência e com individualidade própria distinta dos seus elementos” .

138. Demolir é, pois, nos termos da lei, “destruir” “qualquer construção que se incorpore no solo com carácter de permanência”.

139. Transformar um conjunto constituído por duas praças e uma avenida numa alameda, remover calçadas que mãos anónimas percutiram e desenharam com desvelo de artífice, desfazer passeios, arrasando os pavimentos e os respectivos perfis, consiste, evidentemente (alguém, honestamente, duvidará disso?!), em “destruir uma construção incorporada no solo com carácter de permanência” _ consiste, numa palavra, em demolir.

140. Dito isto, tem de salientar-se que o art. 49.º da LPC nem sequer restringe o seu âmbito de aplicação às “edificações”, e muito menos aos “edifícios”.

141. Bem diversamente, o art. 49.º da LPC recorta o seu âmbito de aplicação através do conceito genérico de “imóvel”, o qual, de acordo com o disposto no art. 15.º/1 do mesmo diploma, se subdivide em três espécies: monumentos, conjuntos e sítios.

142. A definição desses conceitos específicos remete-a o art.15.º da LPC para o Direito Internacional aplicável _ isto é, para a Convenção da UNESCO para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, celebrada em Paris em 16 de Novembro de 1972, aprovada pelo Governo português através do Decreto 49/79, de 6 de Junho.

143. Considerando, pois, as definições constantes do art. 1.º da referida Convenção da UNESCO _ sobretudo as definições de “conjunto” e de “sitio” _ logo se percebe que a LPC, ao estabelecer as condições de autorizabilidade da demolição de imóveis, visa proteger não apenas os edifícios (monumentos), mas também qualquer construção ou obra humana e as próprias obras da natureza.

144. Convém, aliás, lembrar que o conceito de "imóvel", segundo o art.204.º do Código Civil, que integra a respectiva parte geral, tem a amplitude suficiente para compreender "as árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo".

145. É, por conseguinte, inequívoco que as autorizações impugnadas emitidas pelo presidente do IPPAR se consubstanciam em actos administrativos que têm por objecto e efeito a demolição (ao menos parcial) de um imóvel em vias de classificação.

146. Actos administrativos que, portanto, estão sujeitos aos apertadíssimos pressupostos de validade (que são verdadeiros pressupostos de admissibilidade) estabelecidos no art. 49.º da LPC.

147. Denominar tal operação de destruição como intervenção de requalificação não passa de um eufemismo, de um travesti semântico sem qualquer fundamento nem eficácia jurídica específica.

148. E, de todo o modo, se requalificar significa destruir para transformar; se requalificar significa ou pressupõe desfazer o que existe para fazer uma coisa completamente nova; então, decerto, é proibido, em face das disposições imperativas da LPC, requalificar bens do património cultural.

149. Dê-se-lhe o nome que se lhe der, seja qual for o objectivo que lhe subjaza, qualquer intervenção que implique ou envolva a destruição, ainda que parcial, de um bem em vias de classificação deve respeitar, para poder ser validamente autorizada, o espartano princípio da necessidade estabelecido, sob cominação de nulidade, no art. 49.º da LPC.

150. O facto de o legislador, expressa e propositadamente, ter incluído a demolição parcial no âmbito de aplicação do art. 49.º da LPC determina, aliás, que ao respectivo regime se acham submetidas quaisquer obras que, não envolvendo a destruição completa do bem, se traduzam em alterações ou modificações que passem pela destruição ou remoção de quaisquer partes ou elementos dele.

151. Dizendo de outro modo, as únicas obras de alteração ou modificação que escapam à previsão normativa do art. 49.º são aquelas que não incluam operações de destruição de qualquer parte ou elemento do bem sujeito a procedimento de classificação.

152. O património cultural tem de ser, portanto, protegido e preservado na sua integridade.

153. “Todos têm o dever de preservar o património cultural, não atentando contra a integridade dos bens culturais” _ cfr. art. 11.º/1 da LPC.

154. “Todos têm o dever de defender e conservar o património cultural, impedindo, no âmbito das faculdades jurídicas próprias, em especial, a destruição, deterioração ou perda de bens culturais” _ cfr. art. 11.º/2 da LPC .

Fim do excurso

155. Encerrado o excurso relativo à questão do âmbito de aplicação do art. 49.º da LPC, e retomando o curso normal do presente articulado, cumpre agora sublinhar que o vigor posto pelo legislador na proibição da destruição desnecessária dos imóveis em vias de classificação projecta-se ainda, de modo assertivo, na protecção que, no art. 52.º/2 da LPC, se dispensa ao seu próprio contexto (no sentido de enquadramento paisagístico):
“Nenhumas intervenções relevantes, em especial alterações com incidência no volume, natureza, morfologia ou cromatismo, que tenham de realizar-se nas proximidades de um bem imóvel classificado, ou em vias de classificação, podem alterar a especificidade arquitectónica da zona ou perturbar significativamente a perspectiva ou contemplação do bem”.

156. Estas soluções legais, que blindam os bens imóveis em vias de classificação a intervenções agressoras da sua integridade material e perturbadoras da sua especificidade cultural, são, de resto, absolutamente coerentes com as imposições, que concretizam e densificam, de um dos princípios gerais da política do património cultural, que se acha consagrado no art. 6.º da LPC:
“Inspecção e prevenção, impedindo, mediante a instituição de organismos, processos e controlos adequados, a desfiguração, degradação ou perda de elementos integrantes do património cultural”.

157. Em face de tudo aquilo que vai alegado, afigura-se aos autores que o presidente do IPPAR, ao emitir os despachos ora impugnados, além de não honrar a competência fundamental em que a sua lei orgânica o investe , violou frontalmente os citados preceitos da LPC.

158. Efectivamente, as decisões do presidente do IPPAR constituem uma clamorosa violação do rigorosíssimo princípio da necessidade (de estrita necessidade) estabelecido no art. 49.º da LPC.

159. Na verdade, no caso em apreço, além de se não verificar qualquer risco de ruína, não há qualquer bem jurídico superior ao da preservação do património cultural (que, como se verá adiante, é merecedor da própria tutela penal) capaz de justificar o atentado à integridade do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado a que as autorizações do IPPAR pretendem dar cobertura.

160. A preservação da integridade material e histórica do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado não constituía sequer qualquer obstáculo ao normal funcionamento do sistema de metro ligeiro do Porto (de cuja construção e exploração a Metro do Porto, SA é concessionária).

161. No máximo, admitir-se-ia a necessidade de uma parcial reconformação dos passeios na parte superior da Avenida dos Aliados, limitada à zona das bocas de acesso à estação subterrânea que aí se instalou _ mas sempre com a preocupação fundamental de danificar o menos possível.

162. Ainda que, a este respeito, tenha de insistir-se no que já antes se sublinhou: a colocação das bocas de acesso à estação subterrânea nos passeios laterais constitui um desvio ao projecto de construção do sistema de metro que foi objecto do parecer final (favorável condicionado) de Avaliação de Impacte Ambiental, que previa e a sua colocação na placa central da Avenida dos Aliados.

163. O que significa que, ao transferir as bocas de acesso à estação da placa central para os passeios laterais, em nome de uma obediência cega ao estudo preliminar do Arquitecto Álvaro Siza, a Metro do Porto, SA violou o parecer final de Avaliação de Impacte Ambiental.

164. Donde, a necessidade de reconformação parcial dos passeios laterais, limitada à parte superior da Avenida dos Aliados, sempre resulta, ela própria, de uma ilegalidade praticada pela Metro do Porto, SA.

165. Mais uma razão, portanto, para que se trate de reconformação circunscrita ao estritamente necessário e orientada pelo propósito de perturbar o menos possível a integridade da realidade preexistente.

103. Tudo o que vá além disso já entra no domínio da destruição gratuita, desnecessária e desproporcionada de um bem valioso do património cultural.

166. A violação do princípio da necessidade consagrado no art. 49.º da LPC é consumada, nos despachos ora impugnados do presidente do IPPAR, de maneira consciente e confessada.

167. Na verdade, basta ler o instrumento de notificação do despacho do presidente do IPPAR de 11 de Dezembro de 2005 à Metro do Porto, SA (cfr. Doc. 20), bem como as informações para que remete, para se concluir que o preceito do art. 49.º da LPC foi, pura e simplesmente, excluído do elenco das normas a que aquele órgão administrativo se considerou vinculado.

168. Razão pela qual, de resto, não se encontra, nos fundamentos em que se alicerçam os despachos, nenhuma referência a qualquer bem jurídico superior que fosse capaz de legitimar a autorização de destruição em que consistem, nem, consequentemente, qualquer ponderação da medida em tal fosse (estritamente) necessário.

169. Verdadeiramente, portanto, ao emitir tais despachos, o presidente do IPPAR, em vez de orientar-se pelo princípio da preservação do património cultural (no caso, um imóvel em vias de classificação), postou-se numa atitude de reverencial aceitação de uma opção estética e urbanística assumidamente determinada pelo propósito de transformar aquilo que, por força da lei, tem de ser mantido a todo o transe.

170. É causa da maior perplexidade que, numa das informações homologadas pelo despacho de 06 de Junho de 2005, se diga que “Deste conjunto se destaca negativamente a Praça da Liberdade (…)”.

171. Juízo depreciativo que, na perspectiva do IPPAR, justifica que se autorize o desmantelamento da Praça da Liberdade, diluindo-a num segmento de uma nova alameda.

172. Como é possível que uma entidade que, em 1993, emitiu um despacho que abriu o procedimento de classificação do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, sob o fundamento, correctíssimo, de que se trata de um “conjunto urbano monumental, de particular interesse histórico e artístico” (cfr., supra, artigos 9 a 16 desta peça), venha, agora, com se nada fosse, emitir a seu respeito um juízo de depreciação?!

173. Perplexidade que mais se intensifica quando, na mesma informação, apesar de se reconhecer que a solução do estudo preliminar do Arquitecto Álvaro Siza se traduz numa “solução que rompe radicalmente com a situação existente” (situação existente que ao IPPAR cumpre preservar), se diz, logo a seguir, num exercício de pura demissão da responsabilidade de fiscalização (e de subserviência à autorictas do grande Arquitecto), que ela é de aceitar porque, simplesmente, “consiste (…) numa opção de base dos projectistas”!

174. Ao agir assim, o IPPAR desceu ao grau zero da fiscalização e da fundamentação racional da decisão: aceitou o estudo preliminar, e autorizou as obras projectadas pela Metro do Porto, SA, porque, precisamente, tem de respeitar-se as opções dos projectistas! _ ainda que estas opções impliquem a destruição daquilo que a lei incumbe o IPPAR de proteger de qualquer alteração desfiguradora.

175. O IPPAR, por conseguinte, violou manifesta e clamorosamente a lei, tendo praticado, ao emitir os despachos impugnados, actos administrativos para os quais o art. 49.º/5 da LPC estatui a sanção mais grave e radical do direito administrativo: a nulidade.

B -Autorizações para a realização de obras que são objecto do tipo incriminador do art. 213.º/1-d) do Código Penal são nulas, por força do disposto no art. 133.º/2-c) do CPA

176. Tudo o que se deixa alegado é mais do que suficiente para demonstrar a gravidade (em extensão e em intensidade) da ilegalidade em que incorrem os despachos impugnados.

177. Mas o que se alega a seguir, além de esfumar qualquer dúvida que pudesse subsistir, terá de pôr alerta a consciência de todos, de maneira a levar-se realmente a sério a necessidade do cumprimento da lei e de preservação do valioso bem jurídico que é o património cultural _ tão valioso ao ponto de justificar a tutela penal (que é, consabidamente, uma tutela de última ratio).

178. Prescreve assim o art. 213.º/1-c) do Código Penal:
“Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável:
a)… b)… c)…
d) Coisa pertencente ao património cultural e legalmente classificada ou em vias de classificação;
e)…
é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.

179. O preceito é claro, cristalinamente claro, assim como clara é a censura jurídico-penal a que, à luz dele, se deixa submeter a autorização do presidente do IPPAR que ora se pretende seja declarado nulo.

180. Tão claro que condena antecipadamente ao fracasso qualquer tentativa de manipulação semântica, ou de manobra terminológica.

181. Em face dele, é ocioso apurar o que é uma demolição _ porque nele se incrimina todo o acto de destruição, danificação ou simples desfiguração.

182. Em face dele, é inútil qualquer exercício de subtileza retórica destinado a distinguir entre imóvel, edifício ou edificação _ porque nele se protege toda e qualquer coisa em vias de classificação.

183. Nos termos do art. 133.º/2-c) do CPA, “são nulos (…) os actos cujo objecto (…) constitua um crime”.

184. Um acto que autoriza a prática de um crime é, evidentemente, um acto nulo.

185. De resto, um acto que autoriza a prática de um crime é, ele próprio, jurídico-criminalmente relevante.

186. Um acto que, como sucede com os despachos ora impugnados, autoriza, sem que se verifiquem os pressupostos legais de que depende a autorização, a destruição total do espaço público do conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado, que permite o arrasamento de tudo o que nele há de mais característico e identificador, é um acto que tem por objecto o crime previsto e punido no art. 213.º/1-d) do Código Penal _ é, em suma, um acto nulo, por força do disposto no art. art. 133.º/2-c) do CPA.

187. E não venha dizer-se, num exercício de retórica sofistica, que a circunstância de haver uma autorização do IPPAR tem, por si só, o efeito de libertar a situação da alçada da censura penal.

188. Esse efeito redentor só se verificaria se a autorização respeitasse os apertadíssimos pressupostos de admissibilidade de que depende. Mas, como se viu, não é isso que sucede, uma vez que se trata de actos francamente desrespeitadores da disciplina estabelecida no art. 49.º da LPC.

C -O que está em causa é, pois, uma séria questão de estrita legalidade, nunca uma questão de gostos ou de inclinações estéticas, nem sequer de discricionaridade técnica

189. Como denotam esclarecedoramente as alegações precedentes, o que está em causa nos presentes autos, e que impele os autores a assumirem a presente iniciativa processual, não são motivações estéticas subjectivas.

190. Do que se trata é de zelar pelo cumprimento da lei e pela preservação de um bem do património cultural cujo relevo e importância se exprimem na protecção penal que o ordenamento jurídico lhe concede _ ao ponto de cominar com pena de privação da liberdade todo aquele que beliscar a sua integridade.

191. Do que se trata é de levar a sério a necessidade de cumprimento da lei, sem tergiversar.

192. E não se diga que as decisões impugnadas do IPPAR se traduzem no uso de um poder de discricionaridade (técnica), resguardado de qualquer fiscalização judicial _ poder que lhe daria a prerrogativa de impor à comunidade a concepção estética de um determinado arquitecto.

193. De tal discricionaridade técnica dispôs o IPPAR, isso sim, no momento em que, já em Setembro de 1993, emitiu o despacho por força do qual atribuiu ao conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado o estatuto de bem cultural em vias de classificação.

194. Nessa ocasião, o IPPAR, segundo critérios técnicos insindicáveis, poderia ter liminarmente indeferido o pedido de classificação que lhe apresentara o Município do Porto, poderia ter considerado que aquele espaço municipal não era suficientemente importante e valioso para merecer ser defendido através da servidão inerente ao estatuto de bem em vias de classificação.

195. Nessa ocasião, poderia mesmo o IPPAR ter julgado, segundo o juízo estético dos seus técnicos, que o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado era um espaço público desordenado e sem nenhum valor histórico-arquitectónico; poderia mesmo o IPPAR ter defendido a sua transformação (requalificação) em outra coisa diferente.

196. Tudo isso poderia ter acontecido. Mas nada disso aconteceu.

197. O IPPAR, em Setembro de 1993, pelo contrário, no exercício da discricionaridade técnica que então era ineliminável, entendeu (e bem) que o conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado era suficientemente valioso para beneficiar do estatuto de bem em vias classificação, com a inerente aplicação dos meios jurídico-administrativos e jurídico-penais de protecção da sua integridade.

198. A discricionaridade do IPPAR terminou e esgotou-se aí.

199. A partir desse momento, o IPPAR passou a estar rigorosamente vinculado ao dever de proteger a outrance aquilo mesmo que considerara valioso e culturalmente relevante.

200. A criatura impõe-se, pois, ao criador, que deixa de dela poder dispor.

201. Uma vez distinguido um qualquer bem com a honra da classificação (ou do juízo preliminar que o coloca em vias de classificação), jamais o IPPAR poderá autorizar qualquer intervenção que o destrua, o danifique ou, simplesmente, o desfigure.

VII -Conclusão
Eis, pois, meritíssimo Juiz, os factos e as razões pelas quais se pede de V.Exa.

a) Declare nulo o Despacho do presidente do IPPAR de 06 de Junho de 2005, que autorizou a primeira fase das obras realizadas pela Metro do Porto, SA no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado;

b) Declare nulo o Despacho do presidente do IPPAR de 11 de Dezembro de 2005, que autorizou a segunda fase das obras realizadas pela Metro do Porto, SA no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado;

c) Condene o MAOTDR a ordenar à Metro do Porto, SA que tome todas as medidas necessárias ao efectivo cumprimento das condições impostas no Parecer Final da Avaliação de Impacte Ambiental;

d) Declare que a obra realizada pela Metro do Porto, SA no conjunto da Praça da Liberdade, da Avenida dos Aliados e da Praça General Humberto Delgado está sujeita a licenciamento municipal e ao procedimento de audiência prévia previsto no art. 4.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.

Valor: à presente acção atribui-se o valor de € 15 000,00 (quinze mil euros).

Requer-se, nos termos do art. 528.º do CPC, a intimação da Metro do Porto SA para trazer aos autos, no prazo de que dispõe para dedução da contestação, todos os volumes do EIA (estudo de Impacte Ambiental) elaborado para efeitos do procedimento de AIA (Avaliação de Impacte Ambiental) a que foi sujeito o projecto geral de construção do sistema de metro ligeiro do Porto, para fazer prova do que se alega nos artigos 84, 85 e 86 desta peça

Junta: procurações forenses, 20 documentos, duplicados e cópias legais, bem como comprovativo do pagamento antecipado da taxa de justiça inicial. »

A SOCIEDADE DE ADVOGADOS

MATIAS SERRA · FERREIRA DA SILVA · PAULA MANO · PAULO DUARTE · SOFIA PENAJOSÉ PEDRO LIBERAL . BENEDITA GONÇALVES . MARTA REGO RIBEIROADVOGADOS ESTAGIÁRIOS

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