1.1.06

Opinião # 24 -"O absurdo, mais uma vez!"

A.C.E.R.-ASSOCIAÇÃO CULTURAL E DE ESTUDOS REGIONAIS
(Enviado por ofício à C. M. do Porto em 16.03.2005;
aos Grupos dos Partidos na A.M em 11.06.2005;
à Delegação da Unesco em 14.06.2005 )

O absurdo, mais uma vez!
I - Em 1914 foi lançada por Elísio de Melo a proposta de construção da Avenida dos Aliados aprovada pela Câmara em 1915, sendo contratados os serviços do urbanista Barry Parker para a desenvolver.
Nas "Memórias" (Arquivo Histórico Municipal do Porto) redigidas por este engenheiro inglês, aquando das reuniões com a edilidade, pode ler-se "Longas superfícies de ruas ou de estradas somente dão uma sensação de monotonia, de fadiga, de vácuo. O planeador de hoje já não projecta ruas intermináveis em comprimento. O seu desígnio é criar quadros pitorescos em cada ponto, quadros de agradável dimensões e agradáveis proporções entre os comprimentos, larguras e alturas".
Acrescentava ainda:
"Senti que era meu dever melhorar e não destruir a boa forma e as proporções das vossas praças da Liberdade e da Trindade, aumentando mesmo, em cada uma delas a impressão de encerramento e protecção a que os planeadores de cidades dão tanta importância, quando tratando de praças como estas. Mas o que mais fará despertar a ideia de largura, de amplidão, de comprimento e de dignidade da Avenida é o ela ser parcialmente limitada por linhas convergentes em vez de o ser por linhas exclusivamente paralelas".
O edifício da Câmara
"deverá ser de frente dupla dando de um lado para a nova Praça e do outro para a Praça da Trindade. Fica dominando todo o plano".
Pretendia ‘melhorar em vez de amesquinhar a Praça da Liberdade; a Praça da Trindade não parecerá confinar desairosamente com as edificações do lado sul da praça da Liberdade ou com a Igreja da Trindade.
Resultava daí que a praça da Liberdade assumia, no projecto Barry Parker, um papel destacado: "continuará a ser o vosso principal centro de tráfico, pois que o trânsito pela nova Avenida não será muito grande".

O projecto Siza Vieira/Souto Moura altera o desenho da praça da Liberdade, pois:
-propõe a modificação da actual placa central que, de ovalizada, passa a longitudinal e alinhada com as placas da Av. dos Aliados.
-aumenta a largura dos passeios do lado poente e nascente anexando-os aos da Av. dos Aliados e que ficam plantados de árvores;
-substitui o actual piso, em pequenas pedras de basalto e calcário formando desenhos em alguns sítios, por cubos de granito escuro (segundo parece vindas da China!), que irão cobrir passeios, faixas de rodagem e o núcleo central da praça;
Como consequência, a Praça da Liberdade deixará de ser um espaço perfeitamente individualizado, para passar a ser um mero prolongamento da Avenida dos Aliados.

Aquilo que Barry Parker queria manter (‘a boa forma e as proporções’, a ‘impressão de encerramento’) e de evitar ( ‘as longas superfícies de ruas,’ 'as linhas exclusivamente paralelas’) fica gravemente comprometido com o projecto Siza Vieira/Souto Moura.
Por outro lado, não se justifica o estreitamento da Praça da Liberdade por passeios mais largos e filas de árvores pois não ocorreram modificações nos prédios adjacentes. Eles continuam com a mesma implantação e merecem, pela sua qualidade arquitectónica, continuar a serem apreciados havendo espaço livre em frente às suas frontarias e não serem, ainda que parcialmente, ocultadas por copas de árvores.

Ao apreciar-se a antevisão do projecto existente no átrio da Câmara fica-se perplexo e aturdido com semelhante ‘requalificação’. O impacto da mancha negra fazendo desaparecer os espaços ajardinados e canteiros provoca mesmo angústia. Numa cidade, onde são escassos os espaços verdes como se compreende a impermeabilização de toda a Avenida dos Aliados? Que ‘arquitectura paisagista’ é esta que nos é proposta pelo dream-team ?

Com a intervenção Siza Vieira/Souto Moura, o actual Presidente da Cãmara pretende ‘marcar seguramente a história da cidade’ (in jornal ‘Público’ de 15 de Março 2005).
Em nosso entender, o projecto dos dois arquitectos tenderá a provocar:
- uma desqualificação da praça da Liberdade tornando-a um residual da Av. dos Aliados não respeitando a sacralidade do sítio onde em 7 de Maio de 1829 foram supliciados liberais e em 1891 foi proclamada, pela primeira vez, a República.
-uma ‘requalificação’ para o conjunto Praça+Avenida que, segundo a Arq. Teresa Andresen (in Público’ de 22 Março 2005)"
opta pela neutralização da cor. Que não atende ao carácter neoclássico /beauxartiano/eclético dos edifícios circundantes, assim como do espaço avenida e do espaço praça que ali coabitam construídos ao longo do tempo e nunca de uma vez só".

Numa cidade onde a ‘Porto 2001’ deixou um ‘legado’ de espaços ‘clonados’ (Cordoaria, entre outros), o projecto Siza Vieira/Souto Moura alinha com a estratégia de descaracterização que está a tornar o Porto irreconhecível.

II
A poucos dias da inauguração da estátua de D. Pedro IV comentava-se no "Commercio do Porto" de 13 de Outubro de 1866: "É fora de dúvidas que uma das excellentes qualidades d'esta obra monumental está na boa harmonia das proporções da sua altura relativamente ao espaço da praça; o monumento não podia ser maior nem menor do que realmente está, e n'isto mostrou o snr. Calmels os seus grandes conhecimentos como estatuário".

Durante quase 140 anos não houve intenção por parte das várias edilidades de a inverter ou deslocar o que significa concordância com a posição escolhida. Como se compreende então ser necessário inverter a posição da estátua voltando-a para a Câmara Municipal? Numa altura, de contenção da Despesa Pública como justificar este esbanjamento em semelhante intervenção?
O arq. Siza Vieira, aquando da sessão de apresentação do seu projecto na reunião do executivo camarário em 10 de Outubro de 2000, argumentava que ‘hoje a centralidade da escultura perdeu o sentido. A estátua não está no centro de nada’. Queria-se referir às consequências da demolição do antigo edifício da Câmara Municipal que se situava no extremo norte da Praça da Liberdade. Pretendia com o seu projecto ‘restituir a importância que ela tinha no projecto inicialmente gizado pelo arquitecto Barry Parker’. Para tal, propunha
dar ‘uma nova centralidade à estátua’ fazendo-a ‘deslocar uns metros para o lado do Passeio das Cardosas’ (in jornal ‘Público’ de 11.10. 2000).
Ora, não vemos como colocando a estátua de D. Pedro IV no extremo da placa central ela irá ganhar a ‘nova centralidade’. A não ser que se pense em demolir o Palácio das Cardosas aumentando para sul a projectada avenida!
Por outro lado, Barry Parker, nunca se referiu a qualquer perda de centralidade da estátua ao procurar, no seu plano, respeitar a ‘ vista que vai da estátua no centro da Praça da Liberdade até à torre da Igreja da Trindade’. Ao mesmo tempo considerava a Praça da Liberdade ‘já fechada pelas edificações da parte sul’.

Na sua posição actual, a estátua ganha monumentalidade ao ficar na intersecção de dois eixos visuais partindo dos torreões da ‘Nacional’ e do edificio onde esteve o Banco Inglês. Ao ser rodada de 180º a sua leitura frontal fica prejudicada pelo fundo uniforme do Palácio das Cardosas com cuja massa arquitectónica se confundirá.
Por outro lado, desaparece o efeito de surpresa que se colhe hoje a quem descendo a rua dos Clérigos e entra na Praça da Liberdade surgindo-lhe então a estátua. Se o monumento for deslocado mais para sul ficando no enfiamento com a Igreja dos Congregados ele começa a ser visto na posição invertida desde o início da Rua dos Clérigos.

III
Camels, o autor da estátua de D. Pedro IV, ao descrever o seu projecto afirmava: "... procurei sair da rotina ordinária sem todavia me afastar das regras que os artistas da antiguidade nos legaram". O Duque de Saldanha vendo a figura régia esculpida em bronze teria dito: "É o mais perfeito retrato do Imperador que tenho visto" (in jornal "O Nacional" de 22 de Agosto de 1865). Sant'Anna Dionísio, no "Guia de Portugal":
"Depois do monumento a D. José I, no Terreiro do Paço, é estátua-equestre mais valiosa que o país possui, superando como obra de arte a estátua de D. João IV (de Francisco Franco), de Vila Viçosa".
Foi certamente atendendo ao seu valor histórico-artístico que, em 1982, o Decreto n.º 28/82 de 26-2 a classificou como Imóvel de Interesse Público.

IV
No discurso da inauguração da estátua de D. Pedro IV, o rei D. Fernando afirmou:
"O monumento que ali está erigido acabará um dia, como se finou o cidadão ilustre a quem é consagrado. O tempo tudo destrói, gastará aquele bronze, e fará desmoronar os mármores sobre que assentam os seus fundamentos. O esforço e a energia do homem não pode chegar a eternizar senão a fama.
Mas a recordação do Rei, do Legislador e do Soldado perpetuar-se-á com a memória da Liberdade, que deu à sua Pátria, e com o testemunho das grandes virtudes cívicas que lhe ornaram o espírito".
’(in ‘Comércio do Porto’ de 20.Outubro.1866).

A estátua de D. Pedro IV, apesar dos seus quase 140 anos parece ostentar um relativo bom estado de conservação. A predição de D. Fernando ainda está longe de se concretizar. O seu bronze não está gasto e os mármores em que assentam os seus fundamentos ainda não se desmoronaram.
Contudo, o afastamento do local onde foi erigido não provocará danos no monumento?
E ficando em posição invertida com leitura mais difícil e sem a monumentalidade que tinha, isso não representará um menosprezo pela memória do Rei Libertador por parte da ‘Invicta Cidade’ em cujo escudo municipal D. Pedro IV, em 8 de Abril de 1833, mandou apor a condecoração da Torre e Espada ‘em honrosa comemoração dos sacrifícios por que se achava passando’ durante o Cerco do Porto ?
Que ‘gratidão’ é esta a de hoje para com os ‘Soldados e Generais todos descuidados da vida nessas linhas e nesses redutos apresentávamos nossos peitos ao ferro e fogo inimigos’? »
Porto, 16 de Março de 2005
A.C.E.R.-ASSOCIAÇÃO CULTURAL E DE ESTUDOS REGIONAIS

(texto recebido hoje e hoje publicado com autorização da A.C.E.R)